domingo, 29 de maio de 2011

O que não fazer em uma consulta médica

O texto abaixo possui apenas o objetivo de entretenimento. Trata-se somente de uma sátira de meu dia a dia no trabalho, e não tem nenhuma relação com minha prática do mesmo nem se presta ao papel de constituir um código de conduta para ninguém.

O que não fazer em uma consulta médica.

Bom, agora, soltando os cachorros, na esperança de que mordam a canela de algum desavisado...
Tudo bem, eu sei que a realidade dos serviços médicos no Brasil é lastimável e que há alguns colegas aos cuidados dos quais eu não deixaria nem o Bossonaro. Mas, ainda assim, há muitos (a maioria, espero), que ainda querem fazer alguma coisa pelas pessoas, se orgulhar do que fazem ou simplesmente ganhar seu dinheiro dignamente. Porém, a existência dos primeiros citados não é motivo para que esqueçamos a educação que nossas mães nos deram com muito desvelo e muita chibata no lombo, não é mesmo?
Juntando várias experiências que acumulei ao longo do tempo atendendo a alguns demonhos sem noção, decidi escrever um guia enumerando o que não fazer em uma consulta médica.
Começando: nunca, mas nunca peça atestado no início da conversa. Se a dispensa do trabalho for o único motivo da consulta, esconda do médico. Deixe ele pensar que você realmente está recorrendo a um Pronto Socorro para cuidar de sua saúde. Iluda o coitado para que ele pense que todos os anos de estudo que ele enfrentou não serviram somente para ficar sentado dando day offs pra galera.
Ainda sobre os atestados, jamais diga que seu chefe o liberou do trabalho e mandou que você fosse no médico pegar um atestado. Isso é pior do que esfolar nosso saco no asfalto até sangrar. Dá vontade de dizer "tudo bem, mas antes diga pra ele me mandar os honorários de médico do trabalho, e mesmo assim ele não mandará na minha conduta".
Ainda sobre o começo da consulta: não use essas frases:
"Vim porque estou com gripe": se você já sabe seu diagnóstico, pra que precisa de um médico?
"Vim só tomar um buscopan": quando eu ouço isso, dá vontade de me levantar, dar um chute na canela do disinfiliz e sair correndo, ou de virar para o surumano e dizer "OK, aqui está sua ficha, agora prescreva e carimbe". Se já tiver um tratamento em mente, sugira delicadamente, após o diagnóstico; por exemplo: "Na última vez, Doutor, o buscopan aliviou bastante minha dor"; e se, mesmo assim, o médico quiser passar outra medicação, não insista, pode parecer estranho, mas ele deve ter um bom motivo pra isso.
"Doutor, mas esse medicamento não vai me fazer mal?". A resposta que me vem instantaneamente na cabeça é: "Vai, cretina. Na verdade, eu não estou aqui pra curar, mas para sacanear a galera por que sou discípulo da Nazaré Tedesco e fui abusado na infância".
"Mas precisa mesmo tomar isso?". "Não, Bem, passa titica de galinha que sara".
Uma variante: "Mas eu preciso mesmo ficar aqui?". "Não, querida, é que gosto de sua companhia... Daqui a pouco, serviremos um chazinho com bolo de laranja".
"Tem certeza, Doutor?". "Não, mas eu vi o George Clooney fazendo isso no ER, então, deve estar certo".
Falando em Doutor, todos gostamos de ser chamados assim, mas, se por ventura, o paciente não quiser, pode perguntar meu nome e me chamar por ele, e não nomes do tipo "amigão" ( amigão seu ovo, mané, não sou seu amigo, muito menos um objeto usado em relações sexuais de dupla penetração), "companheiro" (bêbados adoram essa, parece que acabei de tomar uma cachaça com eles no bar da Dona Rosa), "campeão" (só se for de paciência sofrida), "gente boa" (não, definitivamente não sou gente boa nessas horas), "moço" (pois não, vai querer pipoca doce ou salgada?). Até acho bonitinho, no entanto, quando uma senhora me chama de "meu filho", chego a corar.
Semana que vem continuo o assunto, falando sobre o papel (ou papelão) do acompanhante e sobre o exame físico.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Reativando o Blog

Estou reativando meu blog! Muita coisa aconteceu entre meu último post e a presente postagem: Minha formatura, o ingresso no mercado de treabalho, mudança de apartamento (\o/), entre outros. Agora que já estou bem seguro em minha nova vida decidi reincorporar o hábito de escrever a minha nova rotina. Aos antigos leitores, peço desculpas pela demora. Aos novos, minhas boas vindas, espero que gostem do blog. Vocês não imaginem como me sinto honrado em ser lido.

Começarei esse post contando algo que ocorreu comigo um dia desses:

Em um de meus últimos plantões, em um hospital onde atendo sala de emergência e intercorrências de enfermaria, e onde há vários leitos de oncologia, minha primeira chamada pelo rádio portátil do hospital foi uma convocação para atender uma "parada no andar".
Quando a enfermagem usa o termo “parada”, logo imagino duas situações.
A primeira e clássica seria o famoso código azul, que se trata de uma convocação para aplicarmos os princípios da reanimação cardiorrespiratória em um paciente viável, isto é, que tem chances de se beneficiar com a manobra e cujo prognóstico é favorável, ou seja, há chance de vida e recuperação, mesmo que parcial.
A segunda seria a inevitável hora da morte propriamente dita (ou óbito, como dizemos em um hospital, um eufemismo que visa tornar a morte algo palatável do ponto de vista técnico, numa tentativa de adequá-lo mais naturalmente à rotina hospitalar). É um momento em que devemos nos curvar diante do inexorável ciclo natural, e reconhecer que é chegado o fim de uma vida como a conhecemos.
Somos nós, médicos, que devemos diferenciar uma coisa da outra... Por isso a enfermagem usa sempre o mesmo termo.
Trata-se, entretanto de uma tarefa frequentemente espinhosa, não só pela dificuldade do médico em reconhecer a morte de alguém sob seus cuidados (o que é tido, quase sempre, como derrota), mas também pela falta de preparo dos familiares no que diz respeito à morte de um ente querido, que constitui, não raro, um obstáculo a se transpor, haja vista que o relacionamento médico paciente vai muito além do binômio médico-paciente.
Enfim... Fui atender ao chamado, percebendo logo que se tratava da segunda situação. Quando me encontrei com a enfermeira e, juntos, nos dirigíamos ao quarto da paciente, ao perguntar "Qual é a situação?" obtive como resposta: "A paciente tem 83 anos, é enfisematosa, cardiopata e foi encontrada em óbito pelo acompanhante pela manhã".
Quando cheguei à beira do leito, as duas filhas da paciente, bem como seu filho, acariciavam gentilmente o corpo de sua genitora, situação que visivelmente se contrastava com o habitual desespero que se costuma presenciar em tais situações.
Os filhos então me disseram que, já na noite anterior, a mãe, com espantosa serenidade, havia-se despedido deles, dizendo que sua hora havia chegado, e que agora cabia a ela ir ao encontro do marido, que também se fora aos 83 anos de idade. Disse que havia gozado de uma vida longa e plena das felicidades e dessabores que a ela cabiam, e que era chegada a hora de os filhos a deixarem ir.
Não havia revolta ou culpa nos olhos dos filhos, somente as plácidas lágrimas de saudade, e a plena certeza de dever cumprido... O conhecimento de que haviam cuidado se sua mãe de todas as formas que a eles eram possíveis.
Ao sair do quarto, perguntei à enfermeira: "será que teremos essa serenidade diante de nossa própria morte, ou da morte de alguém querido?" a mesma simplesmente fixou seu olhar em um ponto distante e permaneceu em silêncio, o que somente fez com que minha pergunta permanecesse pairando infinitamente no ar.

Não há nenhum comentário a fazer sobre esse relato, a não ser a própria dúvida suscitada: "Qual é a minha conduta frente à morte, no âmbito pessoal? Será que um dia estarei pronto para ir ou deixar ir?"

Memento muori.